segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Cedo

Deitou no sofá e dormiu menos que 5 minutos. Olhou pela janela e pensou consigo mesma que era tão tarde que já era cedo. Soltou as mãos. Calçou a sapatilha vermelha, prendeu os cabelos. Foi até a cozinha, tomou um copo d'água. Abriu o portão. Não pretendia acordá-lo, mas fez barulho ao desligar a música. "Estou indo pra minha casa", disse. Eram quase sete horas da manhã. Ela é do tipo que adorava observar as pessoas dormindo. Porém, não se atreveria. Não ali, não trazendo os estragos daquela noite, não desse jeito. Talvez não aquela pessoa. Não se atreveria a velar aquele sono porque talvez não fosse merecedora. Porque talvez ele ficasse como uma pintura gravada em sua cabeça. Aliás, quase todos ficaram. Mas, acima de tudo, não se atreveria a ficar, simplesmente. A essa altura, alguns raios laranja atravessavam a cortina. Despediu-se. Desculpas. Ela pede desculpas demais. Pra si mesma.

Pessoas habitadas.

Estava conversando com uma amiga, dia desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, que eu não conhecia. A descreveu como sendo boa gente, esforçada, ótimo caráter. "Só tem um probleminha: não é habitada." Rimos. É uma expressão coloquial na França - habité -, mas nunca tinha escutado por estas paragens e com esse sentido. Lembrei de uma outra amiga que, de forma parecida, também costuma dizer "aquela ali tem gente em casa" quando se refere a pessoas com conteúdo.
Uma pessoa pode ser altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática, mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de má referência. Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos-de-fada onde tudo funciona, onde todos são belos, onde a vida parece uma pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo.
Retornando ao assunto: pessoas habitadassão aquelas possuídas, de fato, por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas, mas não são menos felizes por causa disso. Não transformam suas "inadequações" em doença, mas em força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São pessoas que surpreedem com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão uam relação mais do que cordial.
Então são as criaturas mais incríveis do universo? Não necessariamente. Entre os habitados há de tudo, gente fenomenal e também assassinos, pervertidos e demais malucos que não merecem abrandamento de pena pelo fato de serem, em certos aspectos, bastante interessantes. Interessam, mas assustam. Interessam, mas causa dano. eu não gostaria de repartir a mesa de um restaurante com Hannibal Lecter, "The Cannibal", ainda que eu não tenha dúvida de que o personagem imortalizado por Anthony Hopkins renderia um papo mais estimulante do que uma conversa com, sei lá, Britney Spears, que só tem gente em casa porque está grávida. Zzzzzzzzz.
Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos fascinar e nos manter acordados uma madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que é melhor ainda.


Martha Medeiros




As pessoas "habitadas" estão aí. Só falta a madrugada oportuna.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Ela era o cara.

Me peguei pensando nela esses dias. Lembrando. Lembrando de uma forma legal, não triste. E isso também não significa que eu a esqueci. Jamais a esquecerei. Jamais esquecerei o trajeto que fazia para encontrá-la pro almoço às vezes. Ou dos livros pro vestibular que eu lia enquanto a esperava no trabalho. Assim que saia, acendia um cigarro. Era batata. O mais engraçado é que, apesar de fumante, nunca exalava fumaça de cigarro. Sempre achei isso impressionante: ela estava sempre muito perfumada. Não era vaidosa ao extremo, mas não dispensava um batom de cor forte. Aliás, tinha vários; uma coleção deles. Adorava sapatos também. Ah, e bolsas. Nunca a vi usando tênis e esse fato sempre me deixou curiosa. "Não gosto", dizia. Também não usava sapatos vermelhos alegando ficar com "pés de pombo". Okay. Era culta, engraçada e ótima cozinheira. Tratava os outros como iguais, com simplicidade e gentileza. Costumava apelidar as pessoas que mais gostava e deu o nome a todos os cachorros que tínhamos. Os adorava. Adorava ler também. Na verdade, devorava os livros. Dentre seus preferidos estavam Sidney Sheldon, Harold Robbins e Agata Christie. Era fã da literatura machadiana também. Quando perguntei a ela certa vez se Capitu traiu ou não Bentinho ela respondeu: "Vai ler, oras. O livro tá lá dentro!". Como eu disse, era culta. E não só em relação à literatura: música, cinema, esportes. Mal sabia eu que tinha tanto dela em mim. Foi preciso o término de um relacionamento de 19 anos pra eu perceber isso. Só ela sabia como mexer no meu cabelo e só ela me chamava de rabugenta do jeito mais carinhoso e lindo do mundo. Tem dias que eu acordo lembrando que me esqueci às vezes. Temo por esquecer da voz dela, das mãos dela, do perfume. Temo por esquecer o que aprendi com ela e até de decepcioná-la, mesmo sabendo que isso não é mais possível. Ou é? Ela me amou mais que tudo, acreditou, me ensinou a ter paciência, a respeitar os outros e aceitar as diferenças entre nós, humanos. Me ensinou a ter caráter, a ser o que eu sou hoje. Ela que me deu a vida e que se foi. Uma coisa é certa e que ainda dói de vez em quando é que eu nunca mais vou poder apresentá-la a ninguém. E nada do que eu fale ou escreva, nenhuma homenagem nunca será o suficiente pra homenagear Dona Rita. Minha mãe era o cara!